19 de dezembro de 2003

O chupão - Part 1

O Fernando conheceu uma miúda há uns meses. Conhecer não é bem o termo; o Fernando pagou-lhe umas taças de champanhe num cabaré chique e acabou por lhe sacar o número de telfone. Contou-lhe o filme habitual: que era solteiro, tinha um empregão, deu a entender que não contava o dinheiro e que adorava restaurantes caros.
A miúda (chamemos-lhe assim para preservar a identidade da "dançarina") telefonou-lhe logo no dia seguinte para confirmar o jantar de que tinham falado na véspera. O Fernando estava acompanhado pela mulher e não podia falar. Tou, tou? Rais parta, estou mesmo a precisar d eum telefone novo. Meia hora mais tarde ligou-lhe para explicar que estava num parque de estacionamento subterrâneo onde obviamente a cobertura é mínima. Ela acreditou e combinaram um jantar para um dia destes que esta semana o Fernando estava muito ocupado e tinha de partir em viagem muito cedo no dia seguinte.
Passaram-se duas semanas até o Fernando pensar outra vez na Svetlana. E só pensou porque ela lhe mandou um SMS a perguntar se ele estava bem. O Fernando pensou que tinha de agir. Chegou a casa e disse à mulher que talvez tivesse de ir visitar um cliente no dia seguinte de manhã muito cedo e que, se calhar, era boa ideia arrancar já e dormir mais descansado já no local. Como a Eugénia não se mostrou muito surpresa o Fernando resolvou avançar com o plano. Afinal ele tinha de partir assim às pressas algumas vezes e ela nunca desconfiou de nada.
Telefonema à Sveta e um convite para jantar. Claro que sim. E lá foram os dois a um italiano muito chique que serve vinhos que chegam a custar quinhentas mocas.

Viagem à Tailândia - The End

O Silvino telefonou. Diise que tinha estado na Martinica. Que foi lá fazer fotografias. Que o tempo estava óptimo e que - gargarejar equivalente a gargalhada - devia estar melhor que aqui. Perguntou-me se eu e a Sónia tínhamos planos. Gaguejei, disee que estava a ouvir mal. Planos para quê? Quando? Este sábado estou na vossa zona, podíamos encontrar-nos, acrescentou. Não, nós não estamos, vamos para longe, um para cada lado e depois, logo a seguir, é Natal e regressamos ao seio das nossas famílias. Fica para Janeiro, acrescentei. Óptimo, disse o Silvino contente com a promessa. A gente então combina qualquer coisa para o ano novo. Ano novo vida nova, ah ah, cacarejou.

20 de novembro de 2003

Viagem à Tailândia - Part 4

Estou sem notícias do Silvino. Da última vez que me telefonou queria ir ao novo "health club" muito chique, aquele que abriu há pouco tempo no bairro mais chique da cidade. A conversa que tivemos deixou pelo menos a certeza de que o Silvino não me telefona para me levar para a cama com ele. Sugerir que a Sónia levasse uma amiga foi uma espécie de desabafo de último segundo, que era na realidade o objectivo do telefonema. O homem devia estar cá por causa dos seus negócios e não tinha nada para fazer naquela sexta-feira ao fim da tarde.
Escusado será dizer que não lhe liguei. Mas prometi que lhe dizia alguma coisa antes das seis da tarde. Esqueci-me, contudo, de desligar o telemóvel. por volta das sete o Silvino telefonou-me e eu, irritado no meio do trânsito e entre duas chamadas para as quais não tinha pachorra cortei a chamada. Ele não voltou a tentar nem deixou recado.
Um sentimento de culpa invadiu-me. Devia pelo menos ter-lhe dito que não ia. Imaginei o Silvino no duche, a pentear-se e a perfumar-se pensando que ia encontrar-se com uma boazona qualquer que eu e a Sónia lhe íamos apresentar. Imaginei-o a escolher a camisa e as calças com corte do início dos anos 80 e colocar perfume com os dedos debaixo das abas do casaco. E imaginei a expressão de decepção quando a chamada foi cortada. Desiludido e sem actividade para aquela sexta à noite. Ele que até tinha comprado um roupão de algodão caríssimo, igual a um que tinha visto num senhor barrigudo que depois da piscina cruzou no parque de estacionamento a entrar para um Carrera verde com estofos de couro beige.

17 de novembro de 2003

Viagem à Tailândia - Part 3

O Silvino telefonou-me. Disse-me que há muito tempo que não nos falávamos e que gostava de falar comigo. Perguntou-me que é que eu ia fazer amanhã. Não menti, disse que não sabia, mas não lhe revelei que não ia certamente encontrar-me com ele. Informou-me que pensava ir a um novo "health club" excelente, topo de gama, uma coisa maravilhosa, onde ele pensava um dia destes fazer fotografias de belas manequins, na piscina, na sauna, "que aquilo é mesmo muito bonito".
Imaginei o Silvino de toalhinha à cintura, com a careca proeminente, com o sorriso Pepsodent e a barriga a escorrer. Não consegui imaginá-lo despido nos banhos turcos. Mas consegui ver a debandada de paneleiros que habitualmente enchem o "hammam" à procura de sensações fortes que são apenas um olhar indiscreto sobre um baixo-ventre.
Será que o Silvino gosta de homens? Naquele clube costumam parar muitos homossexuais, quem sabe...
Isso não me demovia de o encontrar, mas não gosto de situações dúbias, de momentos em que duas pessoas se perguntam, num momento de silêncio mais prolongado: "que raios estou aqui a fazer?". Inevitável se eu me encontrar com o Silvino.
"A Sónia não quer vir também?", acrescentou. E interrompeu o meu "vou falar com ela", acrescentando: "e pode trazer uma amiga, se quiser...".

13 de novembro de 2003

Viagem à Tailândia - Part 2

O Silvino esqueceu-se de mim. Passou mais de um mês sem que ele me contactasse. Eu facilmente me esqueci dele. Falei com a Sónia sobre o que poderia ele fazer na vida. Especulámos mas nenhuma das nossas apostas nos satisfez. Como era possível que alguém pusesse fortunas nas mãos daquele tipo para atravessar fronteiras?!
O Silvino tem ar de amanuense, diria o meu amigo Carlos, mas para mim a comparação ideal faz-se com o Bolhãozinho. Bem sei que a maioria dos meus leitores não sabem quem é o Bolhãozinho, mas eu explico. O Bolhãozinho chama-se Filipe, se não me engano. O senhor Filipe tinha uma velha mercearia mesmo no centro de Felgueiras, junto ao tristemente famoso edifício da Câmara Municipal. Eu só soube que o Bolhãozinho se chamava Filipe porque andei com o filho dele no liceu e ele um dia disse que se chamava Filipe como o pai, numa tentativa atabalhoada de nos convencer a chamá-lo pelo nome e não Bolhãozinho. Mas quem se parece com o Silvino não é o Bolhãozinho junior mas o pai, aquele que sempre conheci atrás de um balcão de madeira, anormalmente baixo, numa mercearia que parecia nunca ter visto a luz nem do sol nem de artifícios tais que lâmpadas. Pior, o Bolhãozinho (porque toda a gente chamava indiferentemente Bolhãozinho à loja ou ao proprietário) ficava virado a noroeste, o que deixava de parte toda e qualquer possibilidade de o sol entrar na loja, tal como nunca entrou no café Belém nem na ourivesaria do Barros, que foi a primeira a ter vidros antibala. Por acaso, um dia, um camião sobrecarregado de troncos de pinheiros passava mesmo em frente à ourivesaria do Barros, que também se chamava ourivesaria Barros, e devido à inclinação do piso deixou cair metade da carga contra as montras repletas de ouro e relógios de marca. Não sobrou um só vidro antibala. O que levou metade dos mangas do meu liceu a escrever nas novas montras, debaixo da placa dourada que anunciava "vidro à prova de bala": "...e à prova de pinheiros?".

23 de outubro de 2003

Viagem à Tailândia - Part 1

O Silvino telefonou-me a perguntar se eu queria ir à Tailândia. Fiquei tão baralhado com o convite como ele. Numa conversa entrecortada de gaguejos e explicações, disse-me que estava a pensar ir à Tailândia para o mês que vem; que tinha lá um amigo que tinha um hotel; que arranjava alojamento gratuito; que eu e a Sónia só precisávamos de pagar o bilhete de avião e que ele até podia contribuir com "uma modesta participação".
Disse-lhe que nunca tinha ido à Tailândia. Achei bem começar por aí, sem nunca lhe revelar que não gosto de viagens intercontinentais e que actualmente não tenho vontade nenhuma de sair de casa a não ser de carro. Disse-lhe que não sabia se no mês que vem conseguiria libertar-me das minhas obrigações profissionais. Disse-lhe ainda que tinha de falar com a Sónia. Caso arrumado. Agora bastava evitar a próxima chamada do Silvino para não lhe dar hipótese de dizer "então já pensaste na nossa viagem à Tailândia?".
Perguntei à Sónia o que é que ela achava. Afinal mal conhecemos o Silvino. Encontramo-lo por acaso e nenhum dos projectos semiprofissionais que me foi propondo conheceu o menor esboço. Na realidade nunca percebi em que ramo ele trabalhava. "Vinhos", explicou-me no dia em que nos conhecemos, "tenho um sítio internet destinado aos produtores de vinho verde". Nunca justificou muito bem, mas eu também não pedi pormenores, porque é que o sítio incluía uma galeria erótica com fotos de mulheres bastante bonitas mas em topless. "Um dia fizemos umas fotografias da Miss Vinho Verde e depois tivemos a ideia de colocar mais fotos de belas raparigas da região demarcada", disse-me nesse primeiro almoço.
Agora recordo que me explicou também que algumas dessas fotos tinham sido tiradas na Tailândia, onde um amigo tem um "resort" de luxo.
O almoço com o Silvino foi estranho. Chegou atrasado, com ar perturbado por qualquer coisa, como se tivesse acabado de ter um acidente de automóvel. Disse que gostava muito daquela pizzaria, mas que tinha tido algumas dificuldades para encontrar o caminho. Enquanto secava o suor que lhe invadia a testa, penteava para o cucuruto a madeixa única que disfarçava mal a calvície generalizada. Comemos rapidamente enquanto ele interrogava a Sónia: de onde vem, para onde vai, que estudou, que procura na vida, porque não faz fotografias de moda, não me diga que tão nova resolver deixar as passereles...
Com as pizzas suficientemente revolvidas nos pratos decidimos que era chegado o momento de sair do restaurante. Trocámos cartões de visita e prometemos que nos contactaríamos em breve. O Silvino insisitiu ainda que devíamos tratar-nos por tu e explicou porque é que conduzia um mísero Peugeot 206 a gasóleo: "é que assim é mais discreto". Por meias palavras deu a entender que tinha imenso dinheiro mas que as suas actividades económicas menos legais estariam em risco se se deslocasse num carro de rico. "Assim, a polícia quando me manda parar nem imagina que eu, às vezes, trago comigo milhares e milhares de euros nesta mala".